O princípio básico do intolerante sempre foi a sua suposta condição superior sobre aquele que era diferente dele. O homem se achava melhor que a mulher, a “causadora do pecado original”, e sempre a estigmatizou na maioria das civilizações antigas. O colonizador acreditava vir de uma cultura moderna, que deveria civilizar os povos “primitivos” e “bárbaros”. O branco tinha a certeza que era melhor do que o negro, o que lhe dava o direito de escravizá-lo. Mas todos esses aspectos se resumem a apenas uma característica, presente em todo intolerante: a ignorância. E falo da ignorância em dois aspectos. Primeiro, no sentido de ignorar, de fato, o que o outro pensa, o que o outro faz, qual a visão de mundo do outro, etc., e nem se interessar em conhecer. E, segundo, na concepção de achar que aquele que é ou age de forma diferente é, automaticamente, inferior. Talvez não haja ignorância maior neste mundo...
“Ó humanos, temei a vosso Senhor que vos criou de um só ser, do qual criou a sua companheira, e de ambos fez descender inumeráveis homens e mulheres”
(Alcorão – 4ª surata, 1ª ayah)
“Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea, e vos dividimos em povos e tribos para reconhecerdes uns aos outros. O melhor dentre vós, perante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus está bem inteirado e é Sapientíssimo”
(Alcorão – 49ª surata, 13ª ayah)
De acordo com a perspectiva islâmica, todos nós fomos criados por Deus e somos descendentes do primeiro homem, Adão. Sob um ponto de vista amplo, todos nós somos irmãos, pois somos provenientes da mesma origem, do mesmo Criador. E tal qual em uma família de muitos irmãos, onde eles têm características semelhantes e outras totalmente divergentes, a humanidade foi construída ao longo do tempo em diversas civilizações, culturas, etnias, etc., o que não significa, em nenhuma hipótese, que alguma seja superior ou inferior. Somos todos seres humanos. Com defeitos e qualidades, semelhanças e diferenças, mas todos seres humanos, merecedores igualmente do exercício do seu livre arbítrio dado pelo próprio Deus. Afinal, se Ele quisesse que todos fossem iguais e pensassem da mesma forma, assim o faria. E essa liberdade de alternativas dada pelo Criador perpassa pela livre escolha de credo.
“Não há imposição quanto à religião, pois já se destacou a verdade do erro. Quem renegar o sedutor e crer em Deus, ter-se-á apegado a um firme e inquebrantável sustentáculo, porque Deus é Oniouvinte, Sapientíssimo”
(Alcorão – 2ª Surata, 256ª ayah)
Em nossa crença, o Alcorão é o último livro revelado por Deus, assim como foi a Torá e o Evangelho, e é destinado a toda humanidade. Nele encontramos nada menos do que 527 ayát (versículos) sobre a importância do diálogo. E como Deus diz nesta ayah acima, a religião não pode ser imposta, pois a fé deve surgir no interior de cada um, está diretamente ligada ao coração, e jamais pode ser transmitida como verdade absoluta. Por esta convicção, vimos por mais de sete séculos muçulmanos, judeus e cristãos convivendo de forma harmônica e pacífica durante o governo islâmico da Andaluzia. Afinal, é uma obrigação religiosa do muçulmano, como verificamos nas ayát descritas neste artigo, respeitar a crença de cada um, e é dever de um Estado islâmico não só garantir esse direito à liberdade religiosa, como também proteger as minorias e os indivíduos pertencentes a outras religiões de qualquer tipo de intolerância.
O profeta Muhammad (Que a bênção e a paz de Deus estejam sobre ele) fez diversos tratados e acordos com os seguidores de outras crenças em sua época, demonstrando como um governo islâmico e os muçulmanos em geral devem agir no que tange ao diálogo interreligioso. E como demonstração prática disso, para finalizar, narramos um caso ocorrido no governo de Omar Ibn Al Khattab (Que Deus esteja satisfeito com ele), que foi o segundo califa (chefe de um Estado islâmico) após o falecimento do profeta Muhammad (Que a bênção e a paz de Deus estejam sobre ele). Ao fazer a oração da alvorada, a primeira das cinco que os muçulmanos fazem diariamente, Omar foi atacado pelas costas, por um não muçulmano, com um punhal envenenado. Em seu leito de morte, ainda tomado pelas dores, ditou o seu testamento, que continha algumas instruções para o próximo califa. Entre elas, estava o seguinte:
"Quero que você, em nome do povo a quem foi concedida proteção em nome de Deus e de Seu Profeta (isto é, os dhimmis, ou as minorias não muçulmanas que vivem no Estado islâmico), honre nosso acordo com eles. Nosso pacto com eles deve ser cumprido, devemos lutar para protegê-los, e eles não devem ser sobrecarregados além de suas possibilidades"
Devemos lembrar que o ano era 644 d.C, e o império islâmico se estendia do Egito à Pérsia. Nos dias de hoje, um atentado fatal a um chefe de Estado do porte de Omar em sua época deflagraria imediatamente uma guerra. Mas Omar não somente perdoou o seu algoz, como ainda lembrou o próximo califa de seu dever para com os não muçulmanos dentro do Estado islâmico, que têm direito não só à liberdade de culto, mas também à proteção de sua vida, sua honra, sua família, sua propriedade, etc.
Histórias como essa, que retratam a justiça com que o muçulmano deve agir em todas as situações, independente de quem seja, muçulmano ou não, homem ou mulher, existem inúmeras. E acreditamos que seja dever de qualquer pessoa amante da paz e da liberdade, promover o direito de cada um escolher e seguir o seu próprio caminho. Até que chegue um dia, se Deus quiser, onde todos enxergarão a liberdade religiosa sob a ótica islâmica: trata-se não apenas de um direito, mas de uma obrigação a ser respeitada.
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Autor: Fernando Celino / Jornalista e integrante do Departamento Educacional da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro
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