segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A presença do Orientalismo em comentário de Arnaldo Jabor

Como o discurso ocidental disseminado pela mídia distorce a realidade histórica do Oriente
Por Sâmia Gabriela Teixeira e Maura Silva
Já dizia o escritor árabe Edward Said sobre os perigos do orientalismo na construção – ou melhor, desconstrução - da visão sobre a cultura oriental e a história dos árabes e muçulmanos. Não por acaso, o orientalismo surgiu com força na época de maior expansão da dominação da Europa e Ocidente no Oriente, quando no período de 1815 a 1914 o colonialismo direto europeu cresceu cerca de 35% para 85% em todo o mundo, de acordo com estudos de Harry Magdof, publicados em seu livro “Colonialism”, parte da 15ª edição da Enciclopédia Britânica de 1974.
Seguindo o padrão ocidental previsível, o comentarista Arnaldo Jabor, que atualmente tem sua coluna fixa na rádio CBN da Globo, no dia 2 de outubro descreveu o povo árabe como “parasita do Ocidente” e líderes religiosos como “canalhas” que se aproveitam da fé de um povo que “não tem nada a não ser Allah”.

Não é nenhuma surpresa que um canal da grande imprensa utilize tais elementos para falar sobre o Oriente, mas é necessário que outros meios busquem esclarecer as desinformações veiculadas na mídia para que o lugar comum não ganhe status de opinião de “especialista” e que desta maneira deturpe realidade e história de outra cultura.
Logo no início do discurso de Jabor, os primeiros comentários já revelam falta de conhecimento ao dizer, em tom negativo e presunçoso, que os árabes vivem hoje na Idade Média. Fica claro que o comentarista, além de analisar muito superficialmente a atual situação do mundo árabe, ignora o fato de que no período medieval a Europa – dita por ele como tão avançada e civilizada - era formada por diversas cidades cercadas por muralhas e governadas majoritariamente por senhores feudais que se orgulhavam de não saber ler. Neste mesmo período, sobretudo entre os séculos IX e X da era cristã, a civilização muçulmana compartilhava da mais desenvolvida sabedoria filosófica e científica na Espanha, Itália e Sicília, enquanto regiões da Europa, “vítima do parasitismo árabe” nas palavras de Jabor, apenas a partir do século XI firmava suas primeiras tendências científicas, quando bispos passaram a autorizar traduções para o latim de importantes livros de autores... árabes – pasmem!
Durante os séculos XII, XVIII e XIV, o trabalho dos tradutores não cessou, pondo em latim não a Rhazés, Albucassis, Avicena, Averróes, mas também autores gregos, como Galeno, Hipócrates, Arquimedes e Ptolomeu, que os muçulmanos haviam vertido em sua própria língua () O fato é que a Idade Média conheceu a antiguidade grega depois que esta passou à língua dos discípulos do Profeta () Sim, deve-se aos árabes o conhecimento da antiguidade; mas não aos curandeiros da Idade Média, que até o grego ignoravam; e por isso, devemos àqueles uma gratidão eterna por nos terem salvado tão precioso tesouro.Apagai os árabes da Históriadisse Librie o renascimento das letras tardará muitos séculos na Europa.
(KURAIEM Mussa, 1962)
Em relação à religião, dramatizada no comentário de Jabor e julgada de maneira irresponsável e limitada, o Islã mostrou-se uma das crenças mais tolerantes da história, e o comentarista ignora o fato de que se hoje há os fundamentalistas, boa parte – senão total parte - da
responsabilidade pela existência de tais grupos é exatamente devida ao apoio político, interesse geopolítico e comercial, e também aos meios de comunicação e discursos propagandistas do Ocidente, que muitas das vezes desenha o fundamentalismo na luta legítima do povo contra a opressão e exploração das grandes potências.
Ainda que tudo isso seja discutido entre sérios profissionais historiadores e cientistas políticos, os estudos de Edward Said sobre o orientalismo ganham a confirmação de que o conhecimento domesticado no Ocidente produziu um discurso científico capaz de “legitimar uma autoridade sobre o Oriente”. Isso porque, afinal de contas, aparenta que tal opinião do comentarista em relação aos radicais árabes é utilizada apenas como gancho para outras ofensas que ele rasga na sequência, sobre, por exemplo, o fanatismo dos que queimaram bandeiras dos “Estados Unidos, Europa etc”. Ora, é por aí também que se explica a falta de fundamento ao afirmar que hoje os árabes são atrasados e “parasitas” do Ocidente. Fato é que hoje o Oriente Médio sofre consequências da influência direta da “civilização” ocidental.
Em 1820, um engenheiro francês chamado Louis Jumel investiu na produção de algodão, obtido no Egito. Segundo o professor e pesquisador Albert Hourani, “dessa época em diante, um volume cada vez maior da terra cultivável do Egito foi destinada à produção de algodão, quase todo para exportação para a Inglaterra. Nos quarenta anos após a iniciativa de Jumel, o valor das exportações de algodão egípcio aumentou de quase nada para 1,5 milhão de libras egípcias em 1861. (A libra egípcia equivalia mais ou menos à libra esterlina)”. E isso é apenas um exemplo...
Obviamente, diante de tal exploração de recursos naturais nos países árabes, essa região não mais conseguiu recuperar um equilíbrio próprio. Segundo o professor de Ciências Políticas Dejalma Cremonese, da Universidade Federal de Santa Maria – RS, os britânicos destruíram o sistema industrial instalado nas regiões da Índia controladas por eles, impondo, a partir do século XVIII, “duras leis tarifárias para impedir que os produtores industrializados indianos competissem com a produção têxtil dos ingleses”. Em seu estudo “Reflexões sobre a democracia e o terrorismo de estado na velha e nova ordem mundial”, Cremonese ressalta que tal modelo do “progresso” que a civilização ocidental buscou instalar no oriente – e o qual Jabor cita com orgulho - é responsável pela morte de “cerca de meio milhão de crianças a cada ano na África, em consequência do serviço da dívida externa, simplesmente em consequência dos juros que seus países precisam pagar”. E o comentarista ainda fala, esperançosamente, numa possível influência “do progresso do lado de cá”? Com tal fala, nos perguntamos: a nossa democracia ocidental atual possui alguma superioridade em relação aos modelos políticos orientais?
Princípios da fotografiaPor mais que discursos rasos a respeito do oriente sejam comuns, é sabido por muitos que a democracia é hoje uma ditadura velada. Basta se analisar os índices de encarceramento e homicídios nas ditas sociedades mais democráticas, e compará-los inclusive com as indesejáveis ditaduras de ontem e de hoje. Em outro trecho da tese de Cremonese, ele diz: “Em tudo o que concerne a essa questão (colonização no oriente médio), observam-se claramente os mais importantes princípios da ordem mundial: assuntos mundiais são controlados pela Regra de Força, enquanto se confia nos intelectuais para dissimular a realidade e servir aos interesses do poder”. E fica claro que o controle das “versões oficiais”, sobretudo as veiculadas pela mídia, está nas mãos dos grandes grupos econômicos, seja sobre assuntos mundiais ou aspectos locais, que possam ser preocupantes para a imagem da “justa democracia ocidental”. Contrariando a fala de Jabor, a verdade é que talvez seja mais fácil governar uma sociedade que vive sob uma “democracia”, pois esses “povos livres e democráticos” talvez sejam os reais obedientes do sistema, e um sistema perverso. O povo livre e democrático de hoje carrega no peito lemas como “bandido bom é bandido morto”, “rouba mas faz” e, quando busca manifestar opiniões de “protesto”, transformam ideologias e a subversão em festa, movimentada por jovens de uma classe média pouco ciente do poder que têm na vida política da sociedade, manipulada pelo “kitsch da Grande Marcha”.
Voltando ao oriente, é importante destacar que a democracia e o progresso ocidental matou no Iraque mais de 114 mil civis no período de 2003 a 2011, de acordo com dados do projeto Iraq Body Count, e 8,54% dessas mortes eram de crianças abaixo de 18 anos. Além desse exemplo, o que dizer do governo mais “democrático” do Oriente Médio, Israel, que desde o início de 2012 mantém em suas prisões mais de 250 detentos administrativos – sem julgamento ou acusação formal – e que, dentre esses, 8 são membros do Parlamento, além de ainda manter, sob acusação, outros 23 parlamentares encarcerados? Parece mesmo um modelo político livre e democrático? E será mesmo que os padrões ocidentais consideram publicamente justo manter 210 crianças, muitas abaixo dos 16 anos, encarceradas por serem acusadas de jogar pedras contra tanques? Não, nós não expressamos publicamente repúdio a tais violações, pois a “Regra de Força” fala mais alto no Ocidente, e isso, sinceramente deveria nos causar vergonha. Vergonha sublinhada ao que o jornalista se refere como atraso de milênios e que se traduz nas violações sofridas por anos de colonização do Oriente Médio pela Europa e EUA.
A história recente da Argélia é exemplo do que uma sociedade “avançada e democrática” é capaz de fazer com um país. Invadida pela França no século XIX com o pretexto de construir colônias agrícolas e militares, os franceses minaram a resistência nativa, destruindo a agricultura árabe com  uma violência que não poupou mulheres nem crianças. Segundo artigo de Rosangela Rosa Praxedes, Bacharel em Ciências Sociais pela USP, publicado na Revista Espaço Acadêmico, “o governo de Napoleão III foi marcado por uma forte militarização na Argélia e quebrou o sistema de propriedade tribal nativa, fixando árabes e berberes em minifúndios e aumentando a miséria dos agricultores. Assim é fácil dirimir que anos de colonização imposta por estrangeiros em nome da superioridade maciça coberta por dogmas sociais, étnicos e culturais, reafirmada ano a ano através da violência, seja passiva deatraso.
O mesmo acontece com o Líbano, mesmo após a sua independência - conquistada em 1941, ainda tido como criação da potência colonial francesa. Fato é que a crescente escalada de violência espraiada pelo país, e que em nada contrasta com o seu passado recente de violências e abusos, é fruto de anos de opressão e tirania causada pela ocupação estrangeira. Talvez seja justo refletir acerca do modelo de colonização do Oriente Médio que durante toda a sua história teve a maior parte do seu território ocupado por potências que hoje julgam o seu retardamento, afinal, é bem provável que oatraso de milêniosseja o reflexo de uma grandeindelicadeza histórica.

Fonte:
http://www.uniaoislamica.com.br/index.php?r=noticia%2Fview&id=969